15 Abril, 2021

O Manifesto Cypherpunk

Em 1992, um grupo de idealistas pensava no futuro da internet. De coisas que ninguém na época pensava, Privacidade Digital e "Sociedade de Vigilância", nasceu o movimento cypherpunk. Uma peça importante foi o Manifesto Cypherpunk, que traduzo aqui para o português.

O Manifesto Cypherpunk

Mas antes, um pouco de contexto.

No final do ano de 1992, os amigos Eric Hughes, Timothy May e John Gilmor fundaram um pequeno grupo de programadores, matemáticos e ativistas que estavam preocupados com uma tecnologia não tão nova na época: a internet. Eles compartilhavam o ideal comum de que a internet, quando disseminada massivamente entre os cidadãos do mundo, poderia ter dois resultados sociais gerais possíveis: (1) ou a internet derrubaria os muros artificiais da sociedade e integraria a humanidade em uma grande comunidade global, (2) ou ela seria a base para o estabelecimento de uma sociedade de vigilância à lá Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, o romance distópico de George Orwell publicado em 1949 (que aliás, preciso ler!).

Hoje, quase 30 anos depois, sabemos que o resultado da disseminação da internet não foi nem um nem outro, mas uma mescla dos dois. A arma que eles imaginavam ser mais apropriada para lidar com um possível futuro distópico (que hoje é realidade concreta e que parece que poucos se importam) era, e continua sendo, a criptografia.

Essas conversas entre eles, na verdade, já tinham começado bem antes. Sempre com a preocupação política central de que a era da internet erodiria as liberdades e privacidades individuais através de um ilimitado poder de vigilancia eletrônica. Esse grupo, que não se sabe bem de quantos eram na época, seguiu firme por muitos anos em encontros presenciais e discussões online (nota mental: uma postagem mais abrangente sobre essa história virá em breve). Um dos principais acontecimentos desses tempos iniciais do movimento cypherpunk foi a fundação de uma lista de discussões por email, a Cypherpunk Mailing List, criada e administrada por Eric Hughes. Essa lista de discussão foi criada em 1992 e em 1994 já possuia 700 inscritos. Nela avanços tecnologicos enormes foram concebidos e desenvolvidos. A composição era bastante diversa. Haviam pessoas interessadas em política, pessoas mais interessadas em ficção científica e discussões filosóficas, e muitos programadores e matemáticos interessados nas questões técnicas da criptografia.

Essas ideias filosóficas e avanços técnicos feitos por esse grupo relativamente pequeno de participantes levou a criação do Bitcoin, do BitTorrent, da rede ToR e do WikiLeaks, por exemplo. E um dos grandes marcos, foi a redação do Manifesto Cypherpunk. Ele ganhou notoriedade, ainda é reproduzido em milhares de veículos (como este aqui) e não perdeu sua importância.


Manifesto Cypherpunk

por Eric Hughes, 9 de março de 1993.

A privacidade é necessária para uma sociedade aberta na era eletrônica. Privacidade não é segredo. Um assunto particular é algo que não se quer que o mundo inteiro saiba, mas um assunto secreto é algo que não se quer que ninguém saiba. A privacidade é o poder de revelar-se seletivamente ao mundo.

Se duas partes têm algum tipo de acordo, cada uma tem uma memória de sua interação. Cada parte pode falar sobre suas próprias memórias sobre isso; como alguém poderia impedir isso? Poder-se-ia aprovar leis contra isso, mas a liberdade de expressão, ainda mais do que a privacidade, é fundamental para uma sociedade aberta; procuramos não restringir nenhum discurso. Se muitas partes falam juntas no mesmo fórum, cada uma pode falar com todas as outras e agregar conhecimento sobre indivíduos e outras partes. O poder das comunicações eletrônicas permitiu tal discussão em grupo, e ele não desaparecerá apenas porque podemos querer que isso aconteça.

Como desejamos privacidade, devemos assegurar que cada parte de uma transação tenha conhecimento apenas do que é diretamente necessário para essa transação. Uma vez que qualquer informação pode ser falada, devemos assegurar que revelamos o mínimo possível. Na maioria dos casos, a identidade pessoal não é relevante. Quando eu compro uma revista em uma loja e entrego dinheiro ao balconista, não há necessidade de ele saber quem eu sou. Quando peço ao meu provedor de email para enviar e receber mensagens, meu provedor não precisa saber com quem estou falando ou o que estou dizendo ou o que outros estão me dizendo; meu provedor só precisa saber como entregar a mensagem e quanto lhes devo em taxas. Quando minha identidade é revelada pelo mecanismo subjacente da transação, eu não tenho privacidade. Não posso aqui me revelar seletivamente; devo sempre me revelar.

Portanto, a privacidade em uma sociedade aberta requer sistemas de transações anônimas. Até agora, o dinheiro tem sido o principal sistema desse tipo. Um sistema de transação anônima não é um sistema de transação secreto. Um sistema anônimo permite aos indivíduos revelar sua identidade quando desejarem e somente quando desejarem; esta é a essência da privacidade.

A privacidade em uma sociedade aberta também requer criptografia. Se eu disser algo, quero que seja ouvido somente por aqueles para quem eu falo. Se o conteúdo do meu discurso estiver disponível para o mundo, não tenho privacidade. Cifrar é indicar o desejo de privacidade, e cifrar com criptografia fraca é indicar que não há muito desejo de privacidade. Além disso, para revelar a identidade de um indivíduo com segurança quando o padrão é ser anônimo requer que seja no formato de uma assinatura criptografada.

Não podemos esperar que governos, corporações, ou outras grandes organizações sem rosto nos concedam privacidade por sua benevolência. É vantajoso para eles falarem de nós, e devemos esperar que eles falem. Tentar impedir seu discurso é lutar contra as realidades da informação. A informação não quer apenas ser livre, ela anseia por ser livre. A informação se expande para preencher o espaço de armazenamento disponível. A informação é o primo mais jovem e mais forte do Rumor; a informação é mais rápida, tem mais olhos, sabe mais e entende menos do que o Rumor.

Devemos defender nossa própria privacidade, se esperamos ter alguma. Devemos nos reunir e criar sistemas que permitam a realização de transações anônimas. As pessoas vêm defendendo sua própria privacidade há séculos com sussurros, escuridão, envelopes, portas fechadas, apertos de mão secretos e mensageiros. As tecnologias do passado não permitiam uma privacidade forte, mas as tecnologias eletrônicas sim.

Nós, os Cypherpunks, nos dedicamos a construir sistemas anônimos. Estamos defendendo nossa privacidade com criptografia, com sistemas de envio de correio anônimo, com assinaturas digitais, e com dinheiro eletrônico.

Os Cypherpunks escrevem código. Sabemos que alguém tem que escrever software para defender a privacidade, e como não podemos obter privacidade a menos que todos nós o façamos, vamos escrevê-los. Publicamos nossos códigos para que nossos colegas Cypherpunks possam praticar e brincar com eles. Nossos códigos são de uso livre para todos, em todo o mundo. Não nos importamos muito se você não aprovar o software que escrevemos. Sabemos que o software não pode ser destruído e que um sistema amplamente disperso não pode ser desligado.

Os Cypherpunks deploram as regulamentações sobre criptografia, pois a criptografia é fundamentalmente um ato privado. O ato da criptografia, de fato, remove informações do domínio público. Mesmo as leis contra a criptografia só chegam até a fronteira de uma nação e de seu braço de violência. A criptografia se espalhará inelutavelmente por todo o mundo, e com ela os sistemas de transações anônimas que ela torna possível.

Para que a privacidade seja generalizada, ela deve fazer parte de um contrato social. As pessoas devem se unir e implantar estes sistemas para o bem comum. A privacidade só se estende tão longe quanto a cooperação de seus semelhantes na sociedade. Nós, os Cypherpunks, procuramos suas questões e suas preocupações e esperamos poder engajá-lo para que não nos iludamos. Entretanto, não seremos afastados de nosso curso porque alguns podem discordar de nossos objetivos.

Os Cypherpunks estão ativamente engajados em tornar as redes mais seguras para a privacidade. Vamos prosseguir juntos a passos largos.

Avancemos.


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