Eu curto quando me perguntam. Mas de certa forma odeio quando me perguntam. O fato de eu não ter e não usar WhatsApp sempre causa uma estranheza. Instagram, Facebook, Gmail, X/Twitter, nada disso. As pessoas quase sempre dizem “tá certo. Eu só uso porque preciso.”. Ou algo no sentido de se eu pudesse não usaria. O que é interessante de explorar mas fica pra outro dia.
Agora o certeiro mesmo é a pergunta: mas por que? Dependendo do contexto, do ambiente ou da pessoa, eu costumo dar diferentes respostas.
A resposta curta e superficial é
Eu não concordo com a forma que eles fazem dinheiro usando nossos dados pessoais e nosso comportamento. O mundo e a nossa vida vai ser cada vez mais digital e, se for para ser desse jeito, eu não concordo. Prefiro ficar de fora.
Na maioria das vezes isso basta e em geral as pessoas concordam. Bola pra frente e vida que segue. Eu com a minha e a pessoa com a dela. Outras vezes, recebo uma resposta do tipo
Eles [essas empresas] já sabem tudo sobre nós mesmo. Não faz diferença. Além disso, não tenho nada para esconder. Não faz diferença…
Eu interpreto isso como um convite à argumentação. Então
A resposta curta e um pouco mais profunda seria algo como
Empresas como Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp) e Alphabet (Google, YouTube, etc) construíram um modelo de negócio que eu não consigo compactuar.
Elas usam comportamento humano como matéria-prima num esquema de previsão e manipulação de comportamento e de sentimentos com o fim único de lucrar. Esse negócio de oferecer serviços grátis: email, rede social, mapas, documentos online… é mais fonte de comportamento, de dados. Eles não nos dizem como funciona, não nos permitem opção e usam isso para ganhar rios de dinheiro com publicidade direcionada. Ou manipulando algoritmos que nos mostram conteúdo para nos levar à um certo estado mental e emocional que nos deixe mais receptivo a um certo anúncio ou produto. Manipular comportamento e emoção!! Tu acha que isso tá certo? Para ganhar dinheiro?!
Se o mundo e as nossas vidas vão ser cada vez mais digitais, eu não quero participar dessa forma de futuro. Não é só cruel e maquiavélico. É um perigo real para sociedade como a gente conhece.
Essa pergunta me incomoda?
Sim e não. Eu adoro quando me perguntam porque é uma oportunidade de trazer, talvez, uma perspectiva diferente. Talvez até uma novidade, um fato que a pessoa que pergunta não sabia ou não conhecia. Quem sabe até surpreender a ponto de estimular um pensamento crítico genuíno. Quem sabe até a pessoa que pergunta, comece a se perguntar se vale a pena. Quem sabe a pessoa embarque na “resistência”! Enfim, gosto da oportunidade de expor um perigo real que me toca muito, que me preocupa de verdade na vida: um futuro sombrio de uma sociedade digital.
O que me incomoda na pergunta e na interação que se desenrola é a sensação de “gente do céu, não pode ser que as pessoas não se importam com isso…”. Mas é isso. Respeito. Longe de mim querer ser aquele chato evangelista que fica martelando na cabeça das pessoas pensando que está fazendo algo legal. Cada um com as causas que lhe tocam.
Mas para mim, uma coisa é certa: daqui a décadas, acho que vamos olhar pelo retrovisor e encarar um reflexo da nossa realidade atual da mesma forma que vemos a escravidão hoje em dia. Na época, era o status quo. “Era simplesmente como as coisas funcionavam”. “Era o que tinha”. Pouco mais de um século se passou depois do fim (formal) da escravidão no Brasil e no mundo e hoje consideramos uma das formas mais perversas e desumanas formas de produção. Uma aberração.
Historiadores do futuro olharão perplexos para nós se perguntando como a sociedade tolerava isso. Como que ninguém percebeu? Que aberração! E de verdade, não acho que esse paralelo seja um exagero. Estamos falando de violação de direitos em massa. De manipulação em massa. Em escala global.
A resposta mais longa e elaborada
Geralmente para mim mesmo, e agora aqui publicamente, essas respostas tem um sentido um pouco mais profundo e estruturado (mas ainda em construção). Coisa que se elabora em mesa de bar, se o clima estiver favorável. Mas raramente em alguma conversa casual.
O Capitalismo de Vigilância
O capitalismo de vigilância é um fato. Podem não concordar com o nome ou com certos meandros de como ele é descrito. Mas acho que poucos discordariam de que nessa nova fase de acumulação de capital nossa sociedade está baseada na prática de mercantilizar a experiência humana e transformar nossos dados pessoais em produtos lucrativos.
As implicações éticas, sociais e políticas dessa nova forma de acumulação de capital são inúmeras. Não dá nem para arranhar a superfície desse assunto em um texto curto.
Através da coleta massiva de dados que são pessoais, empresas de “tecnologia” (elas admitem que são empresas de publicidade) rodam análises e modelos preditivos para moldar, controlar e prever o comportamento humano para fins comerciais. Ponto final. Não é mais sobre “melhorar os serviços”. É sobre lucrar com modelos de previsão e controle com base na experiência humana, nos sentimentos e comportamentos.
Coleta Extensiva de Dados Pessoais
O fato de usar um buscador Google, rolar tela no Instagram e mesmo mandar mensagem no WhatsApp, são centrais neste modelo econômico. Quantidades enormes de dados dos usuários são coletados, muitas vezes sem um consentimento claramente informado, transformando esses dados em insights valiosos - o que no mínimo é um jargão nojento. Cada pesquisa no Google, mensagem no WhatsApp ou interação no Facebook contribui para um vasto banco de dados que alimenta algoritmos de aprendizado de máquina, otimizando publicidade e modelando o comportamento dos usuários de maneiras sutis, mas poderosas.
Muito embora alguns desses dados sejam de fato utilizados para melhorar os serviços, essa matéria-prima gratuita (nosso comportamento) é, em grande parte, um superávit comportamental para antecipar o que uma pessoa específica vai fazer agora, amanhã ou em breve.
Perda de Privacidade
A consequência direta dessa coleta extensiva de dados é a erosão da privacidade individual. Nossos hábitos, interesses, relações pessoais e até mesmo nossos estados emocionais se tornam transparentes para essas corporações. Elas têm a capacidade de prever comportamentos futuros e influenciar decisões, desde o que compramos até em quem votamos, criando uma sensação inquietante de que estamos constantemente sendo vigiados e manipulados.
Nossa vida é a nova floresta a ser explorada e desmatada até o último galho. Fonte de renda sem custo. O capitalismo de vigilância se origina dessa desposseção digital de nossas próprias vidas.
Manipulação do Comportamento
As práticas de vigilância dessas empresas não apenas observam passivamente, mas ativamente moldam nosso comportamento. Através de técnicas de persuasão digital, como notificações constantes e personalização de conteúdo, somos incentivados a passar mais tempo nas plataformas, consumindo mais anúncios e gerando mais dados.
Isso cria um ciclo vicioso onde nossas escolhas são cada vez mais influenciadas por sistemas que servem aos interesses comerciais, em detrimento do nosso bem-estar e autonomia. Somos reduzidos a recursos naturais humanos.
Monopólio e “Falta de Alternativas”
Outro ponto importante é a concentração de poder nas mãos de poucas empresas. Google, Facebook e seus subsidiários têm um controle sem precedentes sobre o fluxo de informações globais. Esta aparente falta de competição limita nossas opções e nos força a usar serviços que operam sob o modelo de capitalismo de vigilância, onde somos fonte de matéria-prima e só.
Este modelo, e estas mesmas empresas estão em tudo. Nos comércios, nas escolas, nas universidades, no trabalho e no lazer. Uma ou duas empresas praticamente controlam todas as formas de fluxo de informação. Quem nunca se deparou com algum atendimento que só aceita WhatsApp? Poucas coisas fervem mais o meu sangue do que.
Implicações Sociais e Políticas
O alcance do capitalismo de vigilância, ou seja, desse modelo econômico vai além das preocupações individuais. Ele ameaça a democracia ao manipular a opinião pública e facilitar e ser complacente com a disseminação de desinformação. Também exacerba desigualdades sociais, pois aqueles com acesso a vastos recursos de dados podem exercer poder e controle sobre aqueles que não têm.
Polarização Política
O Facebook e o X/Twitter têm sido amplamente criticados por amplificar a polarização política. No mundo todo, os algoritmos têm sido acusados de criar “câmaras de eco” onde usuários são expostos apenas a conteúdos que reforçam suas crenças preexistentes. Isso tem contribuído para uma divisão política mais acentuada, onde pessoas de diferentes ideologias têm dificuldade em encontrar um terreno comum.
Manipulação de Eleições
Um exemplo histórico notório é a interferência russa nas eleições presidenciais dos EUA em 2016. O Facebook foi usado para disseminar desinformação e criar divisões entre os eleitores. A empresa admitiu que contas falsas, muitas delas ligadas à Rússia, postaram conteúdos inflamatórios e enganosos para influenciar o resultado da eleição.
Nesse mesmo ano (2016), a campanha de Trump foi acusada de usar táticas de desinformação para desencorajar eleitores negros de votar. De acordo com investigações, a campanha usou anúncios segmentados no Facebook para espalhar mensagens que visavam suprimir a participação eleitoral de afro-americanos.
Desinformação e Fake News
O WhatsApp tem sido um canal importante para a disseminação de desinformação em países como a Índia e o Brasil. Em 2018, a desinformação sobre a segurança de vacinas se espalhou rapidamente pelo aplicativo, levando a protestos e a uma queda na imunização infantil. Em 2020, durante a pandemia de COVID-19, rumores e teorias da conspiração sobre a origem do vírus e tratamentos ineficazes também se espalharam amplamente.
Redes sociais como WhatsApp, Facebook, X/Twitter e YouTube permitem, fazem vista grossa para a disseminação de desinformação por não aplicarem rigorosamente suas políticas de moderação de conteúdo. Isso é claramente uma estratégia para aumentar o engajamento e, consequentemente, os lucros publicitários.
Influência em Políticas Públicas
Google e suas plataformas, como YouTube, têm sido usadas em campanhas políticas para influenciar a opinião pública. Em 2019, foi revelado que Google estava ajudando a moldar a política de privacidade da União Europeia, levantando preocupações sobre conflitos de interesse e a influência indevida das grandes tecnologias na formulação de políticas públicas.
Ou seja…
Simplesmente não dá. Eu me nego a usar produtos e serviços dessas empresas. A resistência ao capitalismo de vigilância não é uma questão individual. Pode ser, na medida em que eu não concordo e boicoto. Mas mais do que isso, é sobre o que vai ser da sociedade. É sobre o nível de poder que aceitamos dar a poucas empresas. É sobre controle social. E sobre o direito de ser capaz de definir o que é minha vida privada e o que não é.
É sobre autonomia e um futuro onde a tecnologia serve verdadeiramente ao bem-estar humano, em vez de explorar nossas vidas para lucro corporativo.
Escolha é resistência!
Isso não significa que eu seja um cara analógico. Pelo contrário, tenho uma ampla gama de presença digital. Desde aplicativos mensageiros até redes sociais. Todos os serviços, aplicativos e programas de computador que eu uso são escolhidos com isso em mente. Resistência!